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Para ti, Ana Margarida, que escolheste não nascer

Sempre quis ser mãe de gémeos, sempre tive esse sonho. A vontade era bem superior ao medo. Mas quem era eu para alguma vez receber o que realmente desejava?!

 

Para ti, Ana Margarida, que escolheste não nascer.

Obrigada por preencheres o meu ventre, por me escolheres como mãe, por me ensinares uma nova forma de amar.

Para ti, Ana Margarida, que escolheste não nascer.

Bem hajas por finalmente me acordares, me despertares, me teres feito renascer.

Para ti, Ana Margarida, que escolheste não nascer.

Esta é a história de como parei de ignorar a tua fugaz presença nesta vida e de fingir normalidade. Esta é a história de como sofri a tua perda, aceitei a tua decisão, abri o meu coração e compreendi que era seguro para sempre amar-te.

Sempre quis ser mãe de gémeos, sempre tive esse sonho. A vontade era bem superior ao medo. Mas quem era eu para alguma vez receber o que realmente desejava?!

Quando engravidei logo imaginei 2 seres pequeninos a crescer dentro de mim. 2 óvulos libertados, 2 fecundações simultâneas. E eu com os meus gémeos num abraço.

O desejo deve ter sido tão profundamente sentido que o único ovo já criado se dividiu em dois, como se o corpo fosse comandado por uma vontade bem superior aos desígnios da carne.

Na primeira ecografia só se vislumbrava um bebé. Eu nada disse, mas continuei a imaginar-me em gravidez gemelar. “Devaneios hormonais” pensava eu na altura, “intuição de mãe” interrogo-me agora. “Pura coincidência” grita a minha mente cientista, aferradamente agnóstica, que tu e a tua irmã não desistem de afrontar.

Não tinha nome para rapaz, e grandes dúvidas no de rapariga. E quanto aos padrinhos? A escolha estava feita, mas fazia-me duvidar. E de repente, como um puzzle que se completa num instante de pura magia, imaginei-me mãe de meninas a dobrar. E os nomes e padrinhos logo se definiram, como se nem tivesse de pensar.

Coincidência? Intuição de mãe? Quem sabe em que acreditar!

E depois a hemorragia. Um desconforto na mesa do restaurante. “Não é nada, já vai passar”. Levantei-me, senti-me molhada. Era noite, entrei no carro. Toquei a roupa que vestia, estava mesmo encharcada. Não queria acreditar! A confirmação que era sangue, a corrida para o hospital. O choro, o desespero, a esperança que ressurgia e logo desvanecia.

A médica, a ecografia, as palavras que tanto queria ouvir, “a sua bebé está bem, ouça só o coração”, e a continuação: “Há algo estranho aqui no útero, algo que não percebo o que é, vamos ter de investigar”.

Não sabia a médica, mas sabia o meu coração de mãe: era o meu sonho de gémeos a ser-me dado e no mesmo exato momento retirado.

Duas consultas mais tarde a confirmação da minha intuição: “É outro bebé que aqui está, mas não é de todo viável”. E a temida continuação: “Sendo gémeos verdadeiros e a deformidade de cariz cromossómico, é certo que a hão-de partilhar.”

 

Acreditei que a anomalia seria outra e um dos bebés iria vingar. Quando a médica se interrogou: “Mas se isso acontecer como se aborta de um sem afetar o outro?”

Apeteceu-me gritar: “Não se aborta, não se aborta, deixa-se nascer! Já percebi, quando nascer vai morrer, mas eu não quero saber, eu não me importo, não me incomodo. Eu abraçarei esse bebé por uma hora, um minuto, um segundo, eu não quero saber, deixem nascer”.

Mas nada disse, logo reprimindo todo o meu sentir com a minha afirmação de eleição: “Que ridículo Márcia Susana.”

O tempo passou, negociei com Deus, mas finalmente acreditei que era mesmo para abortar. Deixei de sentir que ia ser mãe, deixei de sentir quase tudo, só funcionava. Reneguei o meu ventre que ainda carregava vida, escondia-o, não o olhava nem tocava, separei-o de mim.

E quando ia marcar o aborto a brutidão de um ser que me diz que um bebé está bem e o outro a agonizar, sem nunca em mim pensar. Não batia certo, não dava para acreditar. Tentei entender mas ele nada queria explicar. Não compreendia, não percebia, não queria mais sonhar. Chorei a esperança, a reviravolta, a incerteza. Não queria ser eu, não queria mais ser mãe, só queria parar e um rio de lágrimas chorar.

Um novo médico, uma nova opinião, um anjo descido do céu para a tua irmã salvar. Cinco minutos a ecografar e logo vê o que a todos antes tinha escapado. Finalmente um diagnóstico, uma explicação, e uma possível solução. “Márcia, tudo está bem com o seu bebé, com o gémeo que é viável. Mas se o quer realmente salvar tem que ir a Londres e o outro eliminar. E tem que ir para ontem, pois a qualquer momento tudo se pode modificar”.

Sabes, Ana Margarida, tu já tinhas escolhido partir, mas a tua irmã não te queria deixar ir. Então deu-te o coração que devia ser só dela. Partilhou-o contigo. E, assim, tu continuavas a crescer e a, de certa forma, a sobreviver.

Menos de uma semana depois, após muito choro, cansaço e bilhetes de avião comprados para o mês errado, chegamos a Londres e a um atendimento carinhoso e personalizado.

Menos de uma semana depois cortaram a ligação, já não mais a tua irmã podia partilhar o coração.

De novo um jantar, um restaurante, um desconforto no fundo do ventre. E o líquido a jorrar como se não fosse mais parar. Teria perdido o bebé que ainda tinha? Teria a tua irmã desistido de viver sem ti?

Levantei-me, dirigi-me para o quarto. Não olhei para trás, não vi a cadeira encharcada. Quem me dera tê-lo feito! Era um “pedaço” de ti. Era o teu mundo a abandonar-me.

E a tua irmã? Ficou de luto e protestou. Fechou-se no útero, na sua caverna. Usou a placenta como porta e recusou-se a alguma vez a abrir. Mas felizmente escolheu não te seguir, ficou comigo, não quis partir.

E eu? Foquei-me em nada sentir. A tua irmã ainda podia ir, a cada momento abandonar-me para a ti seguir. Quem era eu para sonhar? Com gémeos ou um só bebé que fosse? Quem era eu para ser mãe ainda ansiar?

Ergui um castelo de defesas, foquei-me em nada sentir e desejar. E assim reneguei a tua existência. E abandonei a tua irmã quando ela mais precisava de amor e conforto, quando ela mais precisava de chorar!

 

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