logo-mundo-de-parentalidade

Qual é o verdadeiro significado do sofrimento? Para que serve?

 

Acho que já todos bradamos um dia aos céus: porquê eu?

Perante uma situação difícil, como a perda de algo ou alguém querido, é complicado não questionar qual a razão de ser do sofrimento. Porquê eu? Porquê a mim? O que fiz para merecer isto? Porquê é que isto me aconteceu?

A nossa mente racional procura desesperadamente um sentido para o nosso sofrimento. Afinal é para isso que ela existe, para interpretar e organizar a informação recebida do cérebro emocional.

Se pensarmos bem esta é a base da religião: dar um sentido à vida em geral e ao sofrimento em particular.

Porquê que a mulher possui dores de parto? Porque Eva desobedeceu a Deus e comeu o fruto proibido. Mais, aliciou Adão a fazer o mesmo.

Não estou aqui a criticar a religião católica ou o antigo testamento. Apenas a dar um exemplo de como tudo tem que ter uma razão.

Havia uma outra história na bíblia que me incomodava e despertava especial curiosidade quando era criança. Agora vai-me servir de porta de entrada para o que quero partilhar de seguida, o ponto onde quero chegar: A fábula do bebé e do rei Salomão.

Se a memória não me trai, duas mulheres disputavam a maternidade do mesmo infante. O rei Salomão, sem ter como saber quem era a verdadeira mãe, proclama: corte-se a criança em duas e cada uma que fique com metade! Uma das mulheres grita então: Não, não, dai-lhe a criança a ela mas não lhe fazeis qualquer mal. O rei ordena então que entreguem o bebé a essa mulher, pois só a verdadeira mãe amaria o filho ao ponto de abdicar dele.

A moral da história é obvia, como visto em cima. Mas hoje dei por mim a pensar numa segunda questão, uma reflexão mais subtil, menos óbvia mas nem por isso menos poderosa:

O que aconteceria à verdadeira mãe se Salomão tivesse entregado o bebé à outra mulher, tal como ela sugeriu?

Façam-me a vontade por uns momentos e acompanhem-me até ao Deus de Caim de José Saramago. Certamente que neste livro o bebé seria entregue à mãe que nada disse.

E o que seria feito da verdadeira mãe?

Segundo o psiquiatra vianense Viktor Frankl, viveria um sofrimento suportável, perfeitamente tolerável porque era provido de sentido..

A importância de encontrarmos um sentido para o sofrimento

De acordo com Frankl, o sofrimento deixa de ser sofrimento quando encontra um sentido.

 

Impressionada pela história pessoal deste psiquiatra vienense, que havia perdido toda a família (esposa, pais irmãos) num campo de concentração nazi conseguia perceber de onde vinha a sua teorização. Mas tal não significava que concordasse com ela.

Quis o acaso que enquanto refletia sobre esta teoria recebesse um comentário ao primeiro texto que escrevi para a Ana Margarida, a minha filha que escolheu não nascer. Tal comentário provinha de um pai que experienciava no momento presente o que eu havia vivido no passado, a perda de um filho gemelar in útero.

Enquanto compreendia e validava a sua dor dei por mim a pensar em quando e como havia feito as pazes com uma perda que tanto me havia abalado. E foi aí que todas as luzes se acenderam para mim: fiquei em paz quando encontrei um sentido para a vida fugaz da Ana Margarida.

Estava eu em pleno curso de Doulas quando me sugeriram que a minha filha podia ter escolhido viver apenas um pouco da vida in útero, no meu ventre. Eu podia ou não perceber a razão mas ela tivera os motivos dela para viver uma existência tão fugaz. E fora escolha dela partir.

Nesse momento pareceu-me que tudo fazia sentido como se o mundo se tivesse desintegrado em mil partículas e voltado a integrar de novo, de uma forma que eu era agora capaz de perceber: a Ana Margarida tinha existido com o único propósito de oferecer à irmã uma melhor mãe.

Uma versão de mim que eu nunca teria descoberto se não tivesse passado pela dor de a perder e todas as consequências posteriores na minha vida pessoal, familiar e profissional.

A morte da Ana Margarida pode não ter tido um sentido, quando analisada só a sua partida. Mas a sua vida seguramente que o teve. Serviu para me acordar, para me obrigar a nascer de novo. E, com isso, para possibilitar à Ana Sofia ser criada por uma versão mais madura, adulta e maternal de mim. Uma versão que sem o sofrimento nunca teria aparecido.

Verdade ou não, certo ou errado, este tornou-se o sentido da minha dor. E com ele a vida ganhou outra cor.

O sofrimento desapareceu? Não sei, depende do que entendemos por sofrimento. Ainda dói ser mãe de uma e não de duas. E acredito que vai doer para sempre.

Mas é uma dor pacífica, facilmente aceite e, muito honestamente, até desejada no momento presente. Pois se não doesse era porque eu nunca tinha sido mãe da Ana Margarida e isso eu não aceito, isso sim, seria intolerável.

Dói porque ela existiu e eu queria mais tempo do que quele que tivemos. Mas estou em paz com a sua existência fugaz porque ela teve um sentido e eu amo essa razão.

E por isso sou feliz no presente.

E assim finalmente me rendo a Viktor Frankl e à sua teoria!

 

Share this article

Deixe um comentário

Your email address will not be published. Required fields are marked *