
Desafios da Maternidade, Tempos de Dificuldade: Então e eu?
Deixei cair tudo e abri o coração e a mente ao que o desconhecido tem para oferecer, de bom e de mau, percebendo que só assim poderia viver a vida que desejava e me transformar na melhor versão de mim, no que eu nasci para ser.
É noite avançada e a insónia decidiu visitar-me. Não resisto. Ultimamente aprendi a reconhecer que tudo na vida tem um propósito, uma razão de ser.
Enquanto dou voltas na cama que também partilho com a minha filha, escutando o seu respirar e tentando aplacar os seus pesadelos, dou por mim a refletir na questão que mais me atormentou nos meus primeiros tempos de maternidade: Então e eu?
Nada amadurece um homem ou uma mulher como gerar e criar outro ser. Nada antes, ou depois, nos faz crescer tanto e tão depressa como seres humanos. A parentalidade é um processo de transformação, tanto mais profundo e radical quanto mais intensa é a nossa imaturidade e mais reprimidas estão as nossas sombras.
É um processo belo, desenhado por Deus ou Universo e codificado nos nossos genes. Mas isso não quer dizer que seja inevitável.
Muitos homens e mulheres conseguem passar uma vida inteira fugindo dele, procurando respostas para os buracos negros das suas almas nos filhos e, assim, roubando-lhes a luz que devia ser só deles e permitir-lhes brilhar com todo o seu esplendor.
É triste, é muito triste, mas não é culpa de ninguém. É uma herança geracional que vamos recebendo e passando, sem consciência dos custos para nós, os nossos filhos e a humanidade em geral.
Felizmente, mais por sorte do destino do que propriamente por escolha própria, eu decidi quebrar a continuidade da herança e enfrentar os demónios, viver a transformação.
Para mim foi um processo devastador.
As sombras eram muitas e intensas e as minhas estratégias de vida, de sobrevivência, de colmatar de necessidades, muito jovens na sua maturidade.
Desafios da Maternidade: Como avançar?
Dizem que a gravidez é um período semelhante à adolescência, onde a mulher adquire uma nova identidade, onde “tem de se deixar cair por terra e depois juntar os bocadinhos de uma maneira diferente”. (Quem assina esta reflexão é Catherine Monk, citada por Annie Murphy Paul, no seu livro Origens).
Imagino este período como uma passagem única e personalizada pelo velho Cabo das Tormentas, como um libertar de pele que acompanha o aumento de volume dos nossos corpos e dá origem a uma nova epiderme, completamente desconhecida e impossível de antecipar.
Imagino-o porque não o vivi. Na gravidez da minha filha, resisti com tudo o que tinha e não tinha a esta transformação e consegui entrar na maternidade com a minha antiga epiderme rachada mas ainda bem colada ao meu corpo em sofrimento, acreditando, erroneamente, que as soluções estavam no meu conhecimento antigo, só precisava de o adaptar. Mas a natureza gosta de nos dar segundas, e até terceiras, oportunidades.
Uma vez mãe continuei a resistir. O meu mundo, como eu o conhecia, caía aos meus pés a cada dia, estilhaçava-se em mil pedaços e voltava a estilhaçar-se, infinitamente.
E eu resistia, remava contra a corrente, tentava salvar os meus antigos pertences, agarrar-me ao pouco que ainda me era familiar, cravar as unhas em algo que me segurasse, num tronco qualquer perdido na margem, enquanto que a jangada que era o meu presente deslizava, descontrolada, pelo rio abaixo, deixando para sempre o lago acolhedor, que era a minha vida antiga, em direção ao mar, imenso e desconhecido, que seria agora a minha nova casa.
Como é que eu me ia orientar agora? Como é que eu ia sobreviver, sem terra, sem chão, sem árvores? Onde é que eu me ia apoiar e refugiar nos dias de chuva e águas mais agitadas? Os meus braços estavam “inutilizados”, ocupados a segurar e proteger um bebé incapaz de cuidar de si próprio, servindo só para ele.
E eu? Quem me protegia e me segurava? Quem cuidava de mim? E a minha vida, a minha existência?
Nunca me tinha sentido tão sozinha, tão impotente, tão desamparada. Nunca antes tinha experienciado tamanha sensação de invisibilidade.
E eu? E eu? Era a pergunta que me consumia a alma e queimava o corpo, que criava em mim uma raiva enorme contra aqueles que me eram mais próximos e a vida em geral.
E assim correram os meus primeiros tempos, bastante alargados, de maternidade.
Até que aos poucos comecei a compreender o que Adyshanti tão brilhantemente descreve no poema Vai nu para Deus:
“Quando realmente queres ir fundo no teu conhecimento e transformação, quando realmente te queres transcender, então tens que largar a mente e tudo o que ela contem para empreenderes a jornada.
É como diz o povo, se vais para Deus vai nu ou não vás de todo. Quando a mente diz «vou deixar para trás quase tudo, mas vou meter isto e aquilo no bolso para o caminho, não vá eu precisar», então a viagem nunca vai acabar pois vais para sempre agarrar-te ao conhecido e jamais receber as dádivas do que não conheces e te pode transformar”.
E foi aí que eu parei de resistir.
Deixei cair tudo, convidei o medo e a insegurança a entrarem, a serem os meus únicos companheiros de viagem, e abri o coração e a mente ao que o desconhecido tem para oferecer, de bom e de mau, percebendo que só assim poderia viver a vida que desejava e me transformar na melhor versão de mim, no que eu nasci para ser.
E foi assim que eu descobri que as águas marítimas também podem ser quentes e acolhedoras, que no mar também há terra, chamam-se ilhas, e lá também há árvores, e que a vida no oceano é muito mais rica, diversificada e profundamente bela que no pequeno lago.
E quanto há minha pergunta excruciante: Então e eu?
Pois é, Gordon Neufeld respondeu-me brilhantemente: Já és mãe, por isso não é mais sobre ti! Agressivo? Não, transformadoramente belo, o início do verdadeiro caminho para a maturidade.
Depois de percebido o conceito e percorrida a viagem percebemos que não ser sobre nós é o que preenche e aplaca os buracos da alma que tanto almejam carinho e visibilidade.
Temple of the Dog – Times of Trouble