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O fim de um sentimento de incapacidade

E de repente, de volta ao hospital onde a maternidade se tinha iniciado, deitada no mesmo cadeirão, vendo o mesmo corredor, experimentando a mesma burocracia, eu percebi que tudo era diferente.

 

É o despertar da segunda noite passada no hospital. A minha filha está internada. Diagnóstico: pneumonia. Sentada no cadeirão que me serviu de cama tiro um momento para reconhecer o que me vai na alma. Não é tristeza, não é medo, não é revolta. É simplesmente paz e gratidão.

Foi um longo percurso para chegar até aqui. Foram 5 dias de vómitos e febre intensa, foram 15 dias de tosse persistente, foi 1 mês de constipações que iam e vinham.

Foram três anos, 9 meses e 17 dias de maternidade.

Aqui nasceu a minha filha. Aqui ela viveu os 13 primeiros dias de vida. E aqui aprendi a acreditar que não era uma mãe suficientemente capaz.

Ainda neste mesmo hospital comecei a desejar um segundo filho. Logo após a minha filha nascer, penso que mesmo antes de me conseguir sequer levantar após o parto. E parte desse desejo, talvez não todo mas seguramente uma grande fatia, era simplesmente uma vontade imensa de começar de novo.

Ansiava por uma nova maternidade, uma nova gravidez, uma nova oportunidade. Mas o que eu realmente desejava era voltar atrás e refazer tudo o que pensava ter feito de errado.

Ansiava por provar a mim própria e a quem me rodeava que afinal era capaz, que aquela que chorava e parecia um caco não era realmente eu, que tinha superado, que afinal era tão boa mãe como qualquer outra que me rodeava.

Tentei curar minhas feridas. Deus, como eu tentei! Procurei psiquiatra e psicóloga. Fiz curso de conselheira de aleitamento materno, doula, e massagista de bebés.

Perdi o número aos cursos de parentalidade que frequentei e até coach desta área me tornei. Abri os meus horizontes a terapias alternativas, eu que sempre fora uma cientista racional. Nada excluía, tudo validava.

Fotografia de Rodrigo Lima

Sentimento de incapacidade: em busca da solução

Contava a minha história a quem a quisesse escutar. Os olhares de compaixão e as palavras de admiração enchiam minha alma por um minuto, por alguns segundos faziam-me sentir que talvez as circunstâncias da minha gravidez e parto fossem os responsáveis pelas minhas dificuldades na maternidade. E não uma mera incapacidade inata.

Criei um blog, recebi validação e pedidos de ajuda. Auxiliei quem me procurava.

Tudo isto ajudou, tudo isto me reergueu, tudo isto me fez sentir mais capaz.

 

Aprendi a conhecer a minha filha, dei por mim a quebrar tabus e a confiar cada vez mais na minha forma de a criar. Aprendi a ser mãe e a amar o ser.

Mas nada disto me fez sentir menos defeituosa quanto à forma como havia entrado na maternidade.

Continuava a desejar uma segunda oportunidade, um novo começo, uma nova gravidez. E agora com cada vez mais mágoa. Porque também agora eu percebia com certezas que eu não desejava um segundo filho, mas sim voltar atrás no tempo e mudar a minha experiência. Eu queria sentir que noutro contexto, noutras circunstâncias eu teria sido capaz. Eu queria recuperar a experiência que sentia ter-me sido roubada.

E de repente, num dos momentos mais difíceis da minha vida, após 5 dias de febre e vómitos intensos, de 5 noites sem dormir, de inúmeros momentos de tristeza e impotência perante uma filha que chora e geme nos nossos braços sem que saibamos mais o que fazer para ajudar, de um sem número de telefonemas ao pediatra e idas ao hospital, com o marido longe e sem poder auxiliar, eu senti-me em paz.

E de repente, de volta ao hospital onde a maternidade se tinha iniciado, deitada no mesmo cadeirão, vendo o mesmo corredor, experimentando a mesma burocracia, eu percebi que tudo era diferente.

Olhei para trás, para um passado representado pela sala de neonatologia mesmo ali ao lado, e amei a mulher que um dia fui. Amei a mulher que ali chorara, perdida num sentimento de impotência e desespero, sem perceber o que lhe estava a acontecer.

Abracei a criança perdida que um dia me tinha sentido, a criança que era mãe sem se sentir capaz de o ser. Amei-me como nunca antes o tinha conseguido fazer. E percebi que já não era quem um dia fui, tinha crescido, amadurecido.

Eu tivera a minha segunda oportunidade e desta vez eu fora capaz.

Sozinha, com a roupa vomitada e uma filha que gemia sem parar eu fora capaz de ser a sua guardiã, de encontrar a minha voz, de vencer o cansaço e a vontade de colapsar, de confiar em mim própria, de não desejar ceder o meu lugar de mãe e responsável e de nos fazer chegar a bom porto.

E agora, sediada neste hospital onde um dia senti perder-me, percebo que finalmente me encontrei.

E enquanto a minha filha cura as mazelas do corpo eu, finalmente, curo as da minha alma.

 

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