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Reflexões in útero

 

Olá Jason, como estás? Escrevo-te só para te informar que ainda não nasci. Já fiz uma tentativa, na realidade até cheguei a sair do útero e visitar este mundo… mas estava muito frio, é inverno, voltei a entrar. Não tenho medo, apenas tempo.

Agora que sei que ninguém me vai expulsar com uma manobra de Kristeller, estou a aproveitar para me conhecer. E sabes o que descobri? Que nasci da pior maneira possível, completamente contrária à minha “verdadeira natureza”. Ser empurrada para fora, forçada a “andar para a frente” foi o pior que me podia ter acontecido logo no início da minha existência como ser individual.

Talvez por isso eu tenha passado uma vida toda desejando novos inícios. “Vou para a Faculdade em Coimbra, onde ninguém me conhece…vou começar de novo”, “Vou de Erasmus para Toulouse, onde não conheço ninguém, mal falo a língua e não há portugueses…vou começar de novo”, “a minha filha nasceu ontem, mas eu quero engravidar mal possa, quem me dera um “acidente”…quero começar de novo”…bem, parece-me que o que eu sempre quis foi nascer de novo.

Sabes, Leslie, minha querida mentora, talvez também por isto eu passe a vida com medo que alguém me “puxe o tapete”… afinal foi o que me fizeram logo ao nascer.

E aqui estou eu, a aproveitar a minha segunda oportunidade. Desta vez vou nascer só quando quiser e até lá vou aproveitar para me conhecer melhor.

Estou a refletir no teu mais recente desafio, querida Leslie, “qual a minha verdadeira natureza?” Sensibilidade, pura sensibilidade, sem culpas nem julgamento, porque o que é, é o que é, e não tem que ser diferente. Sem certos nem errados. Sim, eu gosto da calma e do recato, de observar bastante antes de agir, de refletir sobre tudo e sobre todos, de ter poucos mas bons amigos, de fazer tudo a meu tempo.

Eu pertenço aos vinte por cento da população humana caracterizada por Elaine Aron como “altamente sensível”. Eu sei, eu sei, já te ouço, não gostas de rótulos porque eles são reducionistas e nos ofuscam de descobrir quem realmente somos. Mas quando passas uma vida inteira a sentir que não és normal, que não há mais ninguém como tu, que ninguém te compreende… e de repente percebes que um quinto da população animal, e não apenas humana, é tal e qual como tu, passas a amar os rótulos, nem que seja apenas por um instante.

 

Ainda me lembro do dia em que li o livro Fussy Baby de William Sears e me foi dado a conhecer o conceito de Bebés de Alta Demanda ou High Need Babies. Foi a primeira vez, em ano e meio de vida da minha filha, que eu fui realmente capaz de a compreender. Mais, fui capaz de ver para além das dificuldades de criar uma criança com esse temperamento e começar a amar as suas qualidades.

Mal eu sabia que também eu possuía essas características e que uma definição bem melhor me iria ser apresentada por Elaine Aron: Crianças Altamente Sensíveis. E se eu e a minha filha, apesar de iguais neste traço, somos muito diferentes, todos os indivíduos “altamente sensíveis” são únicos e irrepetíveis, tal como todos os outros que não possuem este traço temperamental.

Mas antes de eu realmente me interessar pela unicidade da minha “verdadeira natureza” deixa-me aproveitar esta sensação de pertença, que me é tão cara por me ter sido tão rara em toda a minha existência. Eu sei Dr. Neufeld, eu sei, isso tem a ver com o meu vínculo aos meus pais e a única forma de me libertar da procura de alguém que os substitua e me dê o que não tive é encontrando as minhas lágrimas de futilidade. Eu estou a fazê-lo, ou melhor, eu estou a chorá-lo. Não quero que o meu marido, a minha filha e até os meus amigos sejam alguma vez substitutos inconscientes dos meus pais na perseguição tenaz de uma necessidade básica por preencher, a necessidade de pertença.

Mas voltando a ti, Jason, desculpa a divagação. Quero-te agradecer por esta oportunidade de nascer novamente e informar, orgulhosamente, que ainda não nasci. Tenho tempo.

Mas eu sei que um dia vou sentir-me preparada e vou finalmente querer nascer. Nesse dia talvez te procure para me ajudares no meu nascimento… ou talvez não. Sabes, conheci um grupo fantástico de mulheres que estudam para ser Doulas, verdadeiras guerreiras amazonas dos tempos modernos, e que são lideradas pela pura reencarnação do espírito natural da maternidade, uma mulher que nos dá raízes para crescer com segurança e verdadeiras asas para podermos voar. E eu talvez escolha o colo delas para nascer. Ou talvez prefira nascer sozinha, agora que a solidão já me mostrou que não é assim tão assustadora.

Mas seja como for que eu decida fazer, para sempre obrigada pela possibilidade de escolha e pelo conhecimento impagável de que, salvo raras exceções, deve ser o bebé, e mais ninguém, a escolher quando nascer.

 

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