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Partilhar a vida com alguém: sonho ou pesadelo?

 

Hoje vamos falar de relacionamentos. Partilhar a nossa vida com alguém pode ser maravilhoso. E um verdadeiro pesadelo.

Sei que não falo por todos, mas também estou certa que quem comunga do meu pensamento não é de todo uma minoria.

Todos conhecemos as estatísticas do divórcio e todos procuramos, em alguma altura da nossa vida, a resposta para a pergunta “Como encontrar a minha alma gémea?”

Mas vamos mais longe ainda, quem nunca se perguntou “Será que estou na relação certa? Será que devo persistir ou saltar fora antes de ser tarde de mais?”

Não tenho uma resposta absoluta, de todo, nem lá perto, não sou uma especialista em casamentos. O que eu sei e tenho para oferecer é apenas a minha experiência e opinião pessoal.

E começo por te colocar um desafio: E se a luta que travas é um fiel indicador de que realmente estás na relação certa?

Eu luto no meu relacionamento. Não é a primeira vez que o partilho, se bem que sempre me faça sentir um pouco nua. Eu luto e sempre lutei, mas há já algum tempo que a luta mudou de cor. É em mim que procuro as respostas, não no meu companheiro.

No passado escrevi um texto onde partilho sobre as dificuldades de viver um casamento onde ambas as partes desejam ser escutadas e cuidadas e sentem que não o são. E muitas vezes falam-me desse texto. Por isso hoje decidi escrever mais um pouco sobre isso.

Vivo um relacionamento onde ambas as partes desejam ser escutadas e cuidadas! Já se devem estar a questionar “Sim, parece-me bem, parece-me normal. Onde é que está o problema?”

Pois é, estão certos, todos desejamos ser escutados e cuidados e todos os nossos relacionamentos têm por base essa premissa. Mas e se estamos presos nessa necessidade? E se ela se distorceu de tal maneira que nem somos capazes de ver a diferença entre o que é saudável e doentio numa sociedade que, por si só, está doente?

Permitam-me elaborar.

Nós não vivemos relacionamentos de igualdade. Nenhum de nós, ninguém, zero pessoas. E não o fazemos porque isso é não é natural e vai contra os nossos instintos. Os relacionamentos entre seres humanos, e igualmente nos outros animais, são relações hierárquicas. Um cuida e o outro é cuidado.

Se estão a gritar que não é assim que um casamento deve ser, estão completamente certos. Numa parceria saudável deve existir uma dança, uma constante mudança de posições conforme o que pede o momento: ora eu sou cuidada, ora sou o cuidador. E a dança é instintiva, inconsciente, mas nunca deixa de ser uma dança, uma constante inversão de papéis. Não existe verdadeira igualdade.

E se alguma vez, tal como eu, já se encontrou na posição de contabilizar o que “eu faço” versus o que “tu fazes”, então está na hora de perceber que há trabalho interior para fazer.

O que causa muito sofrimento num casamento são as nossas defesas interiores, que erguemos para sermos capazes de funcionar num mundo demasiado cruel, os sentimentos que perdemos para não colapsarmos, as alterações de personalidade a que nos sujeitamos para nos sentirmos amados.

 

E tudo isto começou na nossa infância. E o problema é que, em maior ou menor grau, todos nós ficamos presos numa dessas defesas e paramos de crescer em termos emocionais. Pelo que casamos e relacionamo-nos em corpos de adultos, mas mentes desesperadas de criança.

Uma dessas defesas e/ou alterações de personalidade que mais comumente vemos tem a ver com a “criança exigente”.

No passado sentimos que estávamos sozinhos no mundo, no passado acreditamos que ninguém nos daria o que precisávamos a não ser que o orquestrássemos. E como tal assumimos um papel que não era o nosso: o papel do responsável pelo nosso próprio bem-estar. E numa sociedade consumida pela falta de tempo e a necessidade de ganhar dinheiro são muitas as crianças que, por uma razão ou outra, assumem este papel. Infelizmente são mais que muitas, são a maioria, são tantas que até já perdemos a noção de que não é isto o normal ou desejável.

As crianças devem descansar na crença de que existe sempre alguém a cuidar delas. A nível inconsciente são muito poucas as que se podem dar a esse luxo.

Mas como é que isto influencia os relacionamentos futuros? Na sua totalidade. De tanto que uma criança assume o papel de controladora do seu futuro, de provedora das suas necessidades, de advogada do seu bem-estar, que fica presa nele. E a partir do momento em que a armadilha se funde com o seu ser e se transforma na sua casa, não há mais crescimento emocional, tornamo-nos pessoas emocionalmente inacabadas.

Somos cuidadoras de nós próprias, para sempre presas nesse papel, eternamente experimentando um sentimento de insaciedade. Não há bailado para nós, somos infindavelmente a pessoa que não se consegue mexer na pista de dança.

E o pormenor mais distorcido, aquilo que realmente revolta as minhas entranhas, é que somos cuidadoras mas sem sabermos realmente cuidar. E quando nos tornamos mães ou pais passamos a nossa incompletude, como uma herança geracional que ninguém merece receber.

Nunca nos sentimos cuidados, vivemos com o peso do mundo nas nossas costas, e agora temos um ser pequenino para cuidar?? Primeiro acusamos o peso da responsabilidade e, com o passar dos anos, acreditamos que os nossos filhos são responsáveis pelo nosso sofrimento. “Se ao menos ele se portasse bem, gostasse da escola, fosse bom aluno, me escutasse, respeitasse o que eu digo… e podia passar mil anos a dar exemplos”.

Mas antes da paternidade ou maternidade a natureza, sábia como mais ninguém, dá-nos uma oportunidade de curar as nossas feridas, de completarmos o que ficou inacabado, de amadurecermos o que ainda é imaturo: e ela chega através dos relacionamentos íntimos.

Por isso o meu desafio: e se a luta que é o teu relacionamento é o indicador mais preciso que estás na relação certa?

Pois é, eu acredito que sim. Os relacionamentos são uma segunda oportunidade de crescermos, de olharmos para o nosso interior e percebermos que defesas levantamos, que feridas não curamos, que criança pequena ainda não se sente verdadeiramente amada.

E quando os nossos muros caiem e os nossos sentimentos renegados voltam para casa tal filho pródigo, então a prisão quebra-se em mil pedaços. E finalmente percebemos o que é ser cuidador. E finalmente somos capazes de nos sentir cuidados. E finalmente aprendemos a dançar.

E nesse momento podemos escolher ficar com a pessoa que nos ajudou a crescer, ou não. Mas aí a decisão será clara e tomada em corpo e mente de adulto, e não com base na criança interior que grita “vou-te rejeitar antes que me rejeites a mim. Xau, já fui!”

 

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