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O meu filho não come

 

O meu filho não come. O meu filho come tão pouco que é impossível que seja o suficiente.

Conhecem a preocupação? Sim? Então também lhe deve ser familiar a vontade de fugir na hora da refeição, a angústia da sua antecipação, o desespero de não saber o que mais fazer, o aperto no coração por toda a comida que vai direta para o caixote do lixo e o sentimento de estar a falhar como mãe.

Eu conheci bem estes caminhos tortuosos no primeiro ano de vida da minha princesa.

Vai ser sempre com grande tristeza que me vou lembrar do momento em que bati no fundo: enfiei a sopa num biberão de papa, restringi fisicamente a minha menina e tentei enfiar-lhe o afamado ouro líquido pela goela abaixo. Ela lutou como um animal ferido nas garras do seu predador.

Eu larguei, caí no chão, paralisada, e percebi que tinha de haver algo de muito errado com aquela cena. Mas o que raio estava eu a fazer? Ela chorava e gritava desalmadamente, procurava-me e afastava-me em simultâneo, demonstrando todas as características do que agora sei ser um episódio de trauma causado pelos próprios pais e originador do que na teria clássica do Vínculo se chama “vínculo desorganizativo”.

Felizmente o meu instinto de mãe orientou-me noutra direção após este cenário dantesco. Não ia forçá-la, não conseguia obrigá-la. Afinal eu própria tinha sido uma criança de muito pouco alimento e ainda hoje me recordo do pavor da hora das refeições.

Lembro-me, com especial clareza, da hora em que acabava a vomitar e a minha mãe, desesperada como qualquer uma de nós sabe bem como, me acusava de o estar a fazer de propósito. Poucas vezes na vida me senti tão revoltada, tão incompreendida, tão injustiçada, tão perdida. E sei que ainda hoje pago o preço de não comer em criança. Carrego feridas e mazelas difíceis de curar. Mas não no meu corpo físico, esse cresceu saudável apesar do pouco sustento. No meu corpo emocional.

E é por isso que escrevo sobre um assunto que tem tanto de importante como melindroso. Por isso e porque recentemente me deparei com estudos e conhecimentos que me têm mostrado um novo mundo por detrás da alimentação infantil, uma espécie de “backstage” por detrás do palco principal que é a refeição e do espetáculo que lá se desenrola, o ato de comer preconizado pelos nossos filhos.

Gordon Neufeld, nos seus inúmeros cursos, nunca se cansa de enfatizar a indestrutível ligação entre a nutrição física e emocional. Segundo o que eu percebo da sua mensagem, uma grande parte dos distúrbios alimentares, seja a anorexia e bulimia seja a obesidade, estão intimamente relacionados com o contexto relacional entre pais e filhos. Uma ligação, um vínculo natural, correto e instintivo traduz-se em crianças que comem de forma saudável. E o oposto é igualmente verdade.

Thomas Verny no seu livro The Secret Life of the Unborn Child apresenta a mesma ideia, o mesmo entendimento. Segundo ele, bebés prematuros ou com baixo peso à nascença apresentam, muitas vezes, dificuldades de crescimento.

Não ganham peso suficiente, não evoluem como esperado, não parecem querer vingar. Segundo este psiquiatra e autor, as taxas de crescimento mais baixas que o normal apresentadas por estes recém-nascidos são geralmente atribuídas a problemas orgânicos, sendo o ligeiro dano cerebral o mais habitual bode expiatório.

 

Mas o que ele e outros investigadores descobriram é que o problema está na falta de contacto físico suficiente após o nascimento, devido ao internamento destes pequenos seres, e não em qualquer falha do corpo físico. Mais, a separação precoce destes bebés de suas mães, por razões medicamente justificadas, interfere com a vinculação inicial puramente instintiva que se traduz no comprometimento de um comportamento materno que dá segurança ao recém-nascido. E, como qualquer ser humano, uma criança alarmada e insegura é um ser sem vontade de comer (ou que come de mais, mas isso vem à posteriori).

Carlos Gonzalez, o famoso pediatra espanhol cujo livro “My child won´t eat” salvou a minha sanidade mental no primeiro ano de vida da minha filha, não se cansa de afirmar que todas as crianças comem o que precisam. Mas numa análise cuidada dos seus escritos parece-me ser possível entender que não é assim para sempre. Há uma dada altura em que a interferência doentia dos pais pode de facto levar a alguns distúrbios alimentares.

Mais, ele defende que nenhuma criança pequena consegue comer mais do que precisa. E muitos pais desesperam porque existe uma grande diferença entre o que cada ser necessita de ingerir e o que os seus pais acreditam que ele necessita, que é predominantemente muito mais do que o que é real. Mas e o comer menos?

Para Carlos Gonzalez nenhuma criança vai morrer por falta de alimento quando ele está disponível, quando tal é oferecido, sendo que forçar o comer não só é desnecessário como contraproducente. Thomas Verny fala-nos do marasmo e dos sem número de bebés que morreram dessa condição nos séculos passados. É logico que falamos de bebés em orfanatos, sem qualquer contacto humano. Recém-nascidos alimentados, higienizados e com um teto para viver. Mas sem colo nem amor. E uma enorme percentagem desses bebés morriam, sem qualquer explicação física. E, se bem me lembro, Carlos Gonzalez apresenta a mesma explicação para o padecimento de tais crianças.

Por isso me pergunto: onde está a fronteira? Onde se desenha a linha entre aqueles que comem o que precisam para viverem em amor e aqueles que apenas se alimentam o suficiente para sobreviverem? Não sei, não sei mesmo. Existem muitos fatores em jogo, como o temperamento e o ambiente externo fora do círculo parental, só para dar dois exemplos.

Mas sei que a minha filha comia apenas para sobreviver. E por isso me permito a ousadia de escrever o que escrevo. Não estou aqui a apontar o dedo a ninguém, a culpar seja quem for. Apenas partilho o que foi duro aprender.

Existe um novo mundo por detrás da alimentação infantil, uma espécie de “backstage” por detrás do palco principal que é o ato de alimentar um filho: o estado emocional da mãe ou principal cuidador.

Por isso, se sentes que o teu filho não come e falha em crescer, experimenta explorar uma nova ideia: deixa de te focar nele e olha para ti própria. O que sentes? O que não te permites sentir? Como te sentes como mãe? Capaz, incapaz, suficiente, insuficiente?

Eu sei que só queria fugir. E muito honestamente ainda o quero mais vezes do que gosto de admitir. E, para mim, a hora mais complicada sempre foi o momento das refeições. Por isso como havia a minha filha de relaxar e comer sem stresses ou ansiedade? Será que eu realmente conseguia esconder o meu medo de não a estar a alimentar direito, de forma a que ela não o recebesse e interpretasse como “a comida é perigosa”?

Laura Gutman, no seu fabuloso livro “A Maternidade e o encontro com a própria sombra” há muito que me respondeu: Não, simplesmente não.

 

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