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Porque nada faço quando tudo quero fazer?

Ser adulto é escolher dar tudo, nada oferecer, ou mil variações no intermédio. Mas escolher, aceitar a realidade de que a forma como me apresento em qualquer relacionamento só de mim depende, é da minha inteira responsabilidade.

 

Por vezes faço coisas de que não me orgulho. Ou melhor, a maioria das vezes sinto que peco pela inatividade. Quando um amigo ou familiar passam um mau bocado eu mantenho-me afastada, não movo uma palha para ajudar.

Chocados? Indignados com tamanho egoísmo? Juntem-se ao clube. Eu certamente que o estou.

Então como é que eu continuo a fazer o mesmo?

Continue a ler para perceber.

Primeiro deixem-me dizer que nem sempre é assim.

Com a maioria dos meus amigos de longa data eu sou capaz de estar presente, de dar apoio, de me chegar à frente. Dou o que tenho para dar, sem sentir que me perco na dádiva e isso é suficiente. Para mim e para eles.

A realidade é que os meus amigos de longa data me compreendem. Talvez sejam como eu nas suas estratégias e defesas. Ou talvez simplesmente sejam mais maduros e aceitem-me tal como sou. Mas a verdade é essa mesma: com alguns amigos sinto-me valorizada sem ter que mudar nada. E isso faz com que eu tenha algo para dar.

Mas com a família é diferente. Como se costuma dizer, a família não se escolhe. E não é que eu a quisesse escolher, gosto dela tal como é. Mas tem sido um processo muito doloroso ser assertivamente eu no seio familiar. Por norma e hábito escondo-me. Nada peço mas também nada dou.

O problema (para mim) é que existem sempre familiares que me dão sem eu pedir. E esses fazem-me sentir incomodada por duas formas (nota importante: não estou a dizer que me incomodam mas sim que eu me sinto incomodada; pode não parecer mas é bem diferente).

Primeiro porque sinto a sua ajuda não solicitada como uma intromissão e em segundo porque me sinto incapaz de corresponder de igual forma, com o mesmo altruísmo.

Mas será que é mesmo de altruísmo e egoísmo que aqui falamos?

Não, claro que não. Falamos de defesas e estratégias de sobrevivência. Uns aprenderam que só quando tudo dão são merecedores de ser amados. Outros, como eu, perceberam que nem assim são suficientes.

E então desvincularam, deixaram de tentar, criaram muros em sua volta. É a pior defesa de todas, a defesa do desespero, a última a ser evocada, a mais destrutiva, para quem a possui e para quem tem que lidar com ela.

Fazer tudo ou nada fazer? A importância de escolher o meio-termo.

Quando somos crianças a nossa prioridade, a nossa necessidade mais básica é sentirmo-nos amados. Só assim nos sentimos seguros. Só assim acreditamos ter valor.

Para tal faremos o que for preciso. E tudo de forma instintiva, sem qualquer consciência dos nossos atos. Não ser amado é morrer. É premente sobreviver, seja qual for o preço.

Uma das estratégias que desenvolvemos para nos sentirmos seguros no nosso seio familiar é abdicar das nossas necessidades para cuidar das dos nossos progenitores. Damos tudo. Desenvolvemos a nossa própria versão interior de Madre Teresa de Calcutá.

Só por si esta estratégia já inclui uma dissociação, um atraso na descoberta ou maturação do verdadeiro eu. E, consequentemente, um sofrimento inerente. Mas o pior é quando ela não funciona.

Quando alguém dá tudo e mesmo assim não se sente valorizado, merecedor de ser amado, então entra em cena a defesa do desespero: o desvínculo.

 

No desvínculo, ou vínculo evitativo segundo a teoria clássica, o sujeito deixa de sentir que tem necessidades. E como tal perceciona as necessidades dos outros como perigosas (inconscientemente) e sente repulsa perante elas (conscientemente).

Eu não sinto repulsa perante os problemas de quem amo (ok, sejamos sinceros, nos de maior gravidade). Mas experimento uma urgência imbatível de fugir, de ignorar, de me isolar no meu próprio mundo.

Não gosto de ser assim. E se ainda me está a ler e se identifica, provavelmente também não.

Então o que fazer?

Escolher o cinzento, com todos os sentimentos incómodos que ele comporta.

O que nós não nos apercebemos é que vivemos como se o mundo fosse preto e branco: matar ou morrer; amar ou odiar; dar tudo ou nada oferecer.

Mas o mundo pode ser cinzento. E no cinzento temos mil tonalidades diferentes por onde escolher.

Há muito que eu posso optar fazer perante um familiar em dificuldades. Não tenho apenas os extremos (tudo dar ou nem querer saber) por onde decidir.

Mas aí vou ter que sentir o desagrado do outro quando não dou o que ele espera de mim. Se eu escolher oferecer apenas um dedo, como uma visita de fim-de-semana, e ele esperar um braço, como visitas todas as noites, então eu vou ter que me sentir egoísta.

Tal não significa que o seja. Sentir não é sinónimo de ser. Mas tal como eu não controlo o que sinto, ele também não. E como ele quer muito mais, sente-se abandonado e dispara em mim sensações de egoísmo.

Mas ser adulto livre é isso mesmo. Viver segundo as minhas próprias escolhas e tolerar os sentimentos que elas acarretam.

Ser adulto é escolher dar tudo, nada oferecer, ou mil variações no intermédio. Mas escolher, aceitar a realidade de que a forma como me apresento em qualquer relacionamento só de mim depende, é da minha inteira responsabilidade.

No passado tive que aceitar os termos do contrato estipulado pelos meus pais no que às regras de um relacionamento diz respeito, por medo de abandono, por necessidade de viver.

No presente o perigo não é mais real. Posso quebrar as amarras, lançar-me ao vento e navegar na tempestade, sem que tal signifique que vou naufragar.

É desconfortável, é mesmo sufocante. Mas é também a verdadeira liberdade e a mãe de todas as possibilidades.

É a importância de escolher um meio-termo.

 

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