
Por onde anda a Meiguice?
Um dos bens imateriais de que eu mais sinto falta neste mundo é a meiguice. Até a palavra soa estranha, como se fosse algo obsoleto, errado, brejeiro.
Sempre fui considerada demasiado sensível. “Não se pode dizer-te nada, ficas logo magoada” foi uma frase que cansei de tanto ouvir. E talvez esteja a ser demasiado sensível aqui também. Há muito que me interrogo se ser demasiado sensível não é simplesmente um dom divino, mas isso é outra história.
Sim, talvez eu esteja a ver coisas onde elas não existem, a sentir dureza onde outros reportam normalidade ou até mesmo sensibilidade. Mas a minha realidade é a minha verdade naquele momento, a minha forma de ver o mundo, de o entender e de a ele me adaptar. E para mim falta meiguice nesta nossa sociedade.
Mas eu não estou a falar que falta meiguice ao mundo em geral, isso ninguém contesta e confesso que a esse contexto já me habituei.
O que realmente me incomoda, o que verdadeiramente faz doer, é a falta de meiguice nas pessoas que a deviam usar como estandarte.
Vivi uma gravidez e um parto traumáticos, e acreditem que não estou a exagerar. E senti inúmeras vezes a falta deste bem, esta lacuna epidémica.
E senti-o de forma particularmente destruidora quando veio daqueles a quem escolhia confiar a minha enorme vulnerabilidade.
Quinze dias após a minha filha nascer, e estando há apenas dois em casa, tinha um encontro marcado por questões de acompanhamento médico. Saí de casa uma hora atrasada, perdida entre a incompreensão de como tal tinha acontecido e do que era agora a minha vida. Pensei que à chegada me iriam compreender, talvez até explicar o que se passava comigo. Levei uma reprimenda. Doeu, doeu de mais. Ainda choro quando o recordo. Foi mais um pedaço de mim que morreu naquele instante, numa jornada de morte iniciada nove meses antes.
Mais de dois anos volvidos investia forte em curar as minhas feridas. Pela primeira vez partilhava o teto com uma grávida feliz, inteira, extasiada. E eu entendia-me defraudada. Queria muito sentir alegria por ela, mas só conseguia experimentar tristeza pela experiência que me tinha sido roubada. Partilhei isto com alguém. Disse “sinto que fui roubada”. Responderam-me “e foste mesmo roubada?”. Fechei a alma e o coração. Sempre soube quais as respostas certas, mesmo quando com elas não concordava. E foi a essa defesa que recorri.
Sim, eu sei a razão de tal pergunta. Sim, eu compreendi o desafio e como isso poderia ajudar-me. Eu estava no papel de vítima e tentavam-me fazer chegar ao de comandante. Sim, o objetivo era levar-me a sentir uma vencedora. Mas não resultou. E magoou, magoou de mais.
Porquê? Porque eu precisava de ser vítima para curar. Tal como um bebé precisa de colo para se desenvolver de forma saudável.
Sabem, eu acredito que há dois tipos de vítimas. Aquelas que gostam de o ser e encontram conforto nessa posição. E aquelas que lutam desesperadamente por sair desse papel.
As primeiras podem precisar de um abanão. Mas as segundas, quando muito magoadas, precisam de um tempo e um espaço onde possam simplesmente sentirem-se vítimas. Onde possam revoltar-se, mandar o mundo abaixo, gritar, espernear, chorar. Onde possam realmente exclamar “não é justo! Eu não merecia isso”. Onde possam simplesmente ser crianças, realizar a maior birra do mundo e não ter ninguém a impedi-las, a apressá-las, a tentar mudá-las ou simplesmente a desejar que se sintam melhor.
Só após o expurgar de uma ferida infetada a podemos realmente curar. Enquanto há pus não existe cura. E, como tal, só depois de toda a dor sair e ser recebida com amor é possível alguém curar e sentir-se vencedora.
E esse é o problema da nossa sociedade. Vivemos para amanhã e a rapidez é premiada como uma virtude altamente valorizada. Crescemos na pressa, nascemos em pressa, e nunca percebemos que a lentidão e a imobilidade também possuem valor.
Sim, uma pessoa só se cura e vive em plenitude se sair do papel de vítima, que é um lugar infantil, e assumir as rédeas da sua existência, que é o que ser adulto realmente significa. Mas dêem-lhe tempo. Por favor dêem-lhe tempo e tratem-na com meiguice enquanto esperam e desesperam.
Sim, nem todas as pessoas são iguais. Nem todos os seres humanos são demasiado sensíveis, criaturas feitas de vidro a quem não se pode dizer quase nada.
Mas sabem, isto é um mito. Essas figuras que parecem tão frágeis são realmente fortes quando tratadas com respeito pelos seus tempos. E quando no seu melhor, são responsáveis por feitos extraordinários, pois elas que tudo sentem também tudo conseguem mudar. Não podes mudar o que não vês e há nuances em que ninguém mais repara.
Por isso, se já te disseram que és demasiado sensível, acredita que é um dom e que um dia vais amar sê-lo. Mas permite-te tempo para lá chegar. Sabes, há um último segredo que te quero revelar:
Onde a meiguice é mais escassa, onde realmente é um bem raro, quase em extinção, é quando é para ser dada de nós para nós. E é precisamente aqui que mais a devemos usar como estandarte.
Posso ter sentido muita falta de meiguice por parte de quem me rodeava, mas nunca ninguém ma negou de forma tão cruel como eu o fiz a mim própria.