
Desabafos de uma adolescente de segundas núpcias
Hoje escolho render-me à vida e finalmente ser adolescente. Por mim e pela minha filha. Porque um dia também ela vai ser adolescente. E talvez, só talvez, mas um talvez que vale o mundo, se eu aceitar e viver a minha passagem ela possa viver a dela no seu tempo devido e não demorar quase 30 anos.
Há dias em que nada parece fazer sentido. Há dias em que me sinto a morrer por dentro. Há dias em que me sinto doente, agoniada e sem forças para caminhar. Há dias em que só me apetece desistir e chorar.
E agarro-me à esperança, a qualquer esperança, a qualquer ponta de alento.
No passado desesperava e fugia do sentir. No presente acolho-o e aceito-o.
Fugir da guerra que se trava dentro de mim não me levou a nada. Há mais de 20 anos que o faço, corro, escondo-me, mudo de território. Penso que a enganei, que finalmente a bati com a minha destreza e nova técnica de evasão. Levanto os olhos e lá estou eu, novamente no campo de batalha, novamente de caras com meus demónios, novamente sentindo-me um fracasso.
Por isso, hoje, escolho render-me ao que é e não o tentar mais mudar.
Sinto que morro, então deixa sentir.
Sinto-me um fracasso, então deixa sentir.
Sinto-me incapaz, então deixa sentir.
Não sei quem sou mais, não sei quem fui e quem serei. Então sou simplesmente quem não se conhece.
E agarro-me à esperança, porque viver na escuridão não é para todos e ainda preciso de um pouco de luz.
Não sei quem sou porque sou adolescente. E ser adolescente é nada saber e tudo sentir.
Há mais de vinte anos que fujo da adolescência, da verdadeira adolescência, daquela que nos faz ser nós, realmente nós, a nossa própria estrela polar e a nossa razão de viver.
Fujo, falho, fujo, falho, fujo, falho.
Hoje chega. Hoje não mais. Hoje acolho a solidão, a tristeza, o cansaço, o sono doentio, as dúvidas constantes, os sonhos quebrados, a incerteza do amanhã e a sensação de que não está ninguém em casa, de que o meu corpo é um involucro vazio, sem conteúdo nem razão de ser, apenas um lar sem gente e que chora a morte de quem lá um dia morou.
Porque a adolescência é uma ponte, uma passagem entre a infância e a idade adulta e uma travessia que precisamos de percorrer nus.
O que um dia foi e nos definiu como crianças cai a cada passada, a cada folego de respiração. Tentamos resistir, agarrar o que conhecemos bem e nos dá segurança. Não queremos mudar.
Mas outro pedaço de nós luta como um demónio possuído pelo direito de continuar a caminhar, por perseverar em despir cada peça de roupa, cada acessório por nossos pais comprados, cada dente de leite, cada pedaço de pele de criança.
E caminhamos nus. E sentimos tudo perder, até a própria epiderme. Mas, em condições ideais, o impulso de amadurecer é maior que a resistência e acreditamos que no fim do deserto há um oásis para nos acolher e banhar.
E o adulto que um dia seremos espera por nós, sem, no entanto, revelar seus segredos. E nós duvidamos se ele realmente existe ou se simplesmente deliramos.
A adolescência é uma ponte, uma travessia entre quem um dia fomos e não somos mais e quem vamos ser mas ainda não somos. A adolescência é terra de ninguém, porque é a origem de toda a gente. E a tentação é desistir, fugir, voltar para trás.
E eu sucumbi aos seus tentáculos, mil vezes, mil anos, tempo de mais.
Mas hoje não, hoje jamais, hoje escolho diferente. Hoje tenho fé. Hoje escolho acreditar que para nascer de novo é preciso morrer primeiro.
E hoje percebo que o campo de batalha sou eu, a guerra é a minha divisão interna e quando fujo dela fujo de mim, de quem sou, de me conhecer.
Hoje escolho render-me à vida e finalmente ser adolescente. Por mim e pela minha filha. Porque um dia também ela vai ser adolescente. E talvez, só talvez, mas um talvez que vale o mundo, se eu aceitar e viver a minha passagem ela possa viver a dela no seu tempo devido e não demorar quase 30 anos.
Gordon Neufeld defende que o adolescente que atravessa a ponte com sucesso é a exceção e não a regra, em grande parte pela incompreensão universal do que realmente é a adolescência, do que envolve e do que é preciso para conquistar a travessia.
Então posso dar maior presente há minha filha do que finalmente viver a minha, conhecer os seus demónios em detalhe, tratar cada um pelo nome próprio, dançar com ele e deixa-lo ir uma vez compreendidos o seu papel e mensagem?
Creio que não. Neste momento apenas creio, mas tenho fé que daqui a nada saberei responder com toda a certeza. Só preciso de mais um tempo, mais algumas passagens, mais algumas danças. E quando der por isso já deixei a ponte e estou na outra margem.