
Uma das maiores pedras no caminho da parentalidade: o instinto da contra vontade
Todos somos diferentes, seres únicos no espaço e no tempo. Todos temos o potencial de descobrir quem realmente somos, a nossa própria unicidade. E ansiamos por o fazer.
Criar um filho é um caminho repleto de pedras que fazem os pais tropeçar e lutar por se manterem em bom curso. Ninguém quer falhar nesta jornada. Desistir está fora de questão. O objetivo é perseverar e chegar a bom porto.
Mas será que o caminho não poderia ser mais suave? Não haverá uma ou duas pedras no caminho que consigamos ultrapassar com mais facilidade?
Certamente que sim.
Neste texto pretendo apresentar uma rocha em que os pais tropeçam vezes sem conta, sem sequer se aperceberem da sua existência: o instinto da contra vontade.
Não é possível desviarmo-nos do que não vemos, quer no contexto literal quer no figurativo.
Por isso, se quer que a sua jornada parental se torne mais suave, continua a ler e perceba porque tropeça tantas vezes sem saber.
A contra vontade no caminho da parentalidade: porque resistem os nossos filhos a fazer o que pedimos?
Segundo o prestigiado psicólogo Gordon Neufeld, todas as crianças possuem o instinto de desobedecer, resistir, contrariar, desafiar, não cooperar, dar uma resposta torta, fazer o oposto do que é esperado, quebrar as regras, adotar atitudes antissociais, ficarem obcecados com tabus.
Estes comportamentos não são genéticos, não fazem parte de qualquer temperamento ou personalidade específicos e muito menos precisam de ser aprendidos.
Perante determinadas circunstâncias, todas as crianças possuem o potencial de serem obstinadas, desagradáveis, beligerantes, argumentativas, respondonas, insolentes, oposiocionais e até desrespeitadoras dos outros.
Estes comportamentos, assim como muitos outros, constituem uma expressão de uma dinâmica que é inerente à condição humana. Esta dinâmica foi apelidada de Contra Vontade pelo psicólogo australiano Otto Rank, na viragem do século XIX para o Século XX, e o seu conhecimento foi recuperado no fim do século passado por Gordon Neufeld.
Pelo desconhecimento da sua existência, o instinto da contra vontade é uma das maiores pedras no sapato com que os pais de hoje se deparam ao criar os filhos.
Mas de onde vem este instinto? Qual a sua finalidade?
São dois os objetivos que o instinto da contra vontade pretende atingir nos seres humanos (e outros animais com sistema límbico):
– Proteger a criança (cria) de serem influenciadas por estranhos;
– Promover na criança a descoberta de quem são como seres humanos e pessoas individuais.
Não é isto o que todos queremos para os nossos filhos? Que eles saibam quem são, que eles pensem pela própria cabeça e que sejam capazes de dizer não a possíveis más influências, independentemente de quão aliciantes possam ser as suas ofertas e sugestões?
Sim, claro que sim.
A boa notícia é que não estamos sozinhos nesse objetivo. A natureza dotou os seres humanos de instintos (como o da contra vontade) que servem esse mesmo propósito.
A má notícia é que quando esse instinto mete mãos ao trabalho, a forma como se expressa costuma ser bastante contundente e desconcertante, particularmente nas crianças pequenas e adolescentes.
São portanto 2 as funções do instinto da contra vontade. Foquemo-nos um pouco mais em cada uma:
1 – O instinto da contra vontade existe para proteger os nossos filhos de serem influenciados por estranhos.
Mas como sabe o instinto quem é estranho e quem é família ou amigo? Não sabe. Como tal, a forma como protege a criança da influência de pessoas que podem não desejar o seu bem é promovendo uma reação instintiva a uma coerção percecionada.
Como quanto melhor o vínculo entre duas pessoas maior é a disponibilidade de cada uma para fazer o que a outra pede (basta ver um casal apaixonado) então quando há uma perceção de coerção é porque o relacionamento não é forte, assim assume este instinto.
A questão aqui é que assumimos que por sermos pai, mãe, avô, avó, professor de uma criança ela está permanentemente e fortemente vinculada a nós. Não. O vínculo é uma força da natureza, como a força que une dois átomos ou faz orbitar os planetas em torno do sol. E como qualquer outra força, pode oscilar, ser mais forte ou mais fraca conforme a proximidade ou distância momentânea entre dois corpos.
Até o casal apaixonado perde a vontade de fazer tudo o que o outro pede com o aprofundar da relação e consequente alargamento da multiplicidade de vínculos paralelos.
Por vezes, para não dizer quase sempre, quando pedimos (ordenamos) a um filho ou aluno para fazer algo esquecemo-nos que em termos de vínculo ele pode estar a 100 mil anos de distância, mesmo que fisicamente esteja mesmo ao nosso lado.
Damos uma ordem. Esperamos ser obedecidos. A criança sente-se coagida e resiste. Dependendo da maturidade (integração) é mais ou menos comedida na agressividade da sua reação. Sentimo-nos desrespeitados, desobedecidos. O que é que fazemos? Falamos ainda mais alto. Apresentamos um ultimato. Perguntamos “mas afinal quem manda aqui?”. No que é que isto se traduz? Em mais coação. Como é que a criança vai então reagir, instintivamente? Resistindo com maior agressividade.
E assim, nós pais, educadores, criamos uma dinâmica de comportamentos desafiantes. E atribuímos as culpas aos nossos filhos.
2 – Promover na criança a descoberta de quem é como ser individual.
Todos somos diferentes, seres únicos no espaço e no tempo. Todos temos o potencial de descobrir quem realmente somos, a nossa própria unicidade. E ansiamos por o fazer.
Para descobrirmos quais as nossas vontades, quais as nossas preferências e desagrados, quais as nossas próprias ideias e opiniões, primeiro temos que criar um espaço seguro onde elas possam surgir. O que significa que primeiro temos que criar um espaço onde não entrem as vontades, desejos, preferências, desagrados, opiniões e ideias dos outros.
Quando começamos a nascer como seres individuais somos como plantas frágeis a germinar de uma semente. Se outras plantas se sobrepuserem a nós, roubando o sol e alimento, jamais conseguiremos prosperar. Como tal a natureza criou para nós uma cerca de arame farpado que protege o nosso eu frágil em germinação das agendas e vontades dos adultos: é o instinto da contra vontade em todas as manifestações anteriormente listadas.
Por isso os pré escolares e os adolescentes são aqueles mais impregnados de instinto de contra vontade. Porque estas são as duas etapas da vida com maior potencial de desenvolvimento quanto a quem somos como seres individuais.
O instinto da contra vontade não se manifesta só entre pais e filhos ou professores e alunos. Também está bem presente entre patrões e empregados, vendedores e potenciais compradores, marido e mulher e até no nosso relacionamento com nós mesmos. Afinal qual pensam ser a origem da procrastinação? Sim, o instinto da contra vontade.
O instinto da contra vontade é uma pedra no caminho de qualquer pai ou mãe que se dedica a criar um filho. Mas é tão maior ou menor consoante a nossa compreensão da dinâmica. E a sua existência tem por base potenciais que todos desejamos que os nossos filhos atinjam, como resistir à vontade daqueles que lhes querem mal e serem capazes de pensar por si mesmos.
Por isso é tão importante recuperar o conhecimento e compreensão deste instinto e aprender como não tropeçar nele.