
Gostava que alguém me tivesse visto
Não sei muito bem como começar este texto. Não tem início nem tem fim o que quero partilhar. É pessoal e ao mesmo tempo profissional. É uma dança, uma verdadeira dança, pelo que simplesmente me vou permitir bailar.
Gostava que alguém me tivesse visto quando estava grávida. Verdadeiramente visto, perscrutado para além da armadura que usava como defesa e que recentemente aprendi a amar.
Estava ferida, verdadeiramente ferida, de tal forma magoada que não podia nem me permitia sentir a dor. Matei meu mundo emocional para poder sobreviver no físico, e esqueci-me que quem pagava o preço era a minha filha. Na verdade não o esqueci, não sabia, e abençoo a ignorância.
Mas gostava que alguém me tivesse viste, verdadeiramente visto, de feridas abertas, corpo sangrando e coração falsamente de pedra.
Usava uma armadura, dizem-me que me mostrava forte e capaz de com tudo lidar. Dizem-me que me admiravam. Preferia que me tivessem ajudado a chorar.
Lembro-me de não conseguir pensar, lembro-me de quase não ser capaz de andar. Recordo-me de parar o carro à beira da estrada e sucumbir aos ataques de pânico. De sentir que ia morrer. De me obrigar a respirar e do medo que tinha em me esquecer de o fazer.
Mas o momento passava, no secretismo do isolamento, e eu vestia a armadura e voltava a funcionar.
Odiei-me à posteriori, odiei a minha vergonha, o meu altruísmo, a minha cobardia em me mostrar. Odiei não ter pedido ajuda e simplesmente ter continuado a caminhar.
Mas uma vez caída a raiva, recordei as mil vezes que tentei despir a armadura. Talvez tenha tirado só uma peça de metal, e provavelmente a mais pequena. Mas sei que pedi ajuda, leve e gentilmente, com subtileza e muito indiretamente, mas pedi, e nada recebi.
Sei que a vida é minha e só eu a posso comandar. E sei como sou má em requisitar o que mais falta me faz.
Mas gostava que alguém me tivesse visto, verdadeiramente visto, e me tivesse apoiado a chorar.
Ainda choro lagrimas de sangue, mas é já só uma torneira que pinga e não mais o rio Amazónia.
E sei que muito pouca gente era capaz de me ver, verdadeiramente ver, com o peso emocional que eu carregava.
E sei que eu não sei se seria capaz de me ver, verdadeiramente ver, se de fora estivesse e quisesse fazer algo para ajudar.
Porque quando a dor é tamanha, tão grande como o mundo ou um oceano profundo, é difícil ficar com ela, apoiar, nada tentar mudar e simplesmente não nos perdermos também no buraco negro que consegue ser.
Gostava que me tivessem visto, verdadeiramente visto, e gostava de ser capaz de ver. Gostava de ter aprendido, de ter retirado algo de positivo do meu quase afogamento, e de agora ser capaz de outros apoiar.
Mas a verdade é nada disto é sobre resolver ou ajudar a curar.
Eu acho que fui vista, verdadeiramente vista, mas a impotência de quem me via era de tal ordem que eles também tiveram que se cegar.
Porque para ver verdadeiramente alguém temos que aprender a viver no limbo, no difícil equilíbrio de ver sem nada resolver.
Quando eu morria a cada dia, quando doía a respirar, quando sucumbia perante o pânico e o grito estava eternamente preso no silêncio da vergonha, eu não precisava de soluções, sugestões ou trabalhos emocionais.
Nesses instantes de puro desespero, tudo o que eu necessitava era de alguém que visse a dimensão da minha dor e se dispusesse a sentar-se comigo e com ela. Sem nada mudar, sem nada resolver, sem sonhos ou almejos de algo curar.
Apoiar emocionalmente alguém, ser verdadeiramente capaz de ver e ajudar a chorar, implica saber sentir sem ser sobre nós, sem ser pessoal.
Quando algo podia ser feito eu sentia-me vista. Quando a bolsa amniótica rompeu e eu não sabia se tinha perdido um bebé ou dois, eu tive quem me visse, quem ajudasse, quem apoiasse. Fisicamente.
E depois ficava o vazio, o medo, as feridas de mais um trambolhão. Eu erguia-me e caminhava. E o mundo aplaudia a minha força. Mas eu queria ser fraca, eu precisava de ser fraca, de cair e chorar.
Mas quem se atreve a tombar sem segurança que a vão apanhar?
Quem se atreve a espolinhar, fazer birra e gritar sem segurança de que ainda a vão amar?
Ninguém, nem um louco.
Então que fazemos com as nossas crianças, dizendo-lhes que vamos embora sem elas, ignorando suas chamadas de atenção impróprias, e afirmando que “já passou” e “não precisas mais de chorar”?
Criamos grávidas como eu, mulheres falsamente fortes, que morrem por dentro a cada dia, sangram um Mar Vermelho, acumulam uma galáxia de feridas, mas tudo com um sorriso no rosto e a convicção que a gravidez não deve afetar a sua performance como mulher, esposa e profissional, nem sequer uma gravidez em que se vive cada dia com 50 por cento de probabilidades de perder o bebé.