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Diagnóstico: Adolescência Reprovada

Escolher ir ao psiquiatra era, para o meu inconsciente, o mesmo que aceitar que eu tinha uma doença mortal. Mas no segundo ano do meu curso de Ciências Farmacêuticas tudo mudou.

 

Apercebi-me que não tinha vivido a Adolescência tinha eu 19 anos. Estava no segundo ano da Faculdade e um momento no tempo fez-me pedir aos meus pais que me marcassem uma consulta no psiquiatra.

Durante muitos anos a minha mãe havia-me perguntado, aqui e ali: “Queres ir ao psiquiatra?”. Sei que nunca respondi que sim, mas também acredito que nunca o tenha recusado veementemente.

Ir a uma consulta de psiquiatria não era um tema tabu em minha casa, uma vez que ambos os meus pais o frequentavam de tempos a tempos.

Mas eu sabia que a pergunta não era isenta de emoções fortes, e a resposta continha um atestado de sucesso ou fracasso para os meus progenitores quanto ao seu trabalho parental.

Paralelamente, escolher ir ao psiquiatra era, para o meu inconsciente, o mesmo que aceitar que eu tinha uma doença mortal. Por isso, por muito que todas as vezes tivesse desejado responder “sim, quero, sim, preciso” a minha resposta sempre foi um simples “não”.

Mas no segundo ano do meu curso de Ciências Farmacêuticas tudo mudou.

O primeiro ano tinha sido um pesadelo no que toca aos meus relacionamentos sociais e havia passado o verão a desejar e sonhar que o segundo havia de ser bem diferente.

Digamos que, de certa forma, ainda era uma pré-escolar que acreditava em magia. Que cria que a vida pode mudar de um dia para outro por um simples trejeito de vontade dos Deuses do Olimpo.

O primeiro período tinha começado, mas não a pleno gás. Era a fase de adaptação, a altura em que ainda tínhamos tempo para deambular pela faculdade e cidade, arrumar as nossas segundas casas e, maioritariamente, conviver.

Não me lembro bem do contexto, mas recordo-me, com toda a clareza de sentimentos, do momento em que senti que algo de muito errado se passava comigo. Ou, melhor dito, que algo de muito errado existia na minha pessoa e não havia mais como lhe fugir.

Voltava da faculdade para o lar de freiras que era então a minha casa. Saíra da universidade a correr, a fugir de um perigo de morte que a convivência social me fazia tantas vezes sentir, e corria para o porto seguro que só a nossa casa consegue ser.

Mas parei pelo caminho, bem no meio do passeio, com uma sensação de morte e sufoco no peito. Estava junto à PSP de Coimbra, mais ou menos a meia viagem entre a escola e o dito lar. Não queria voltar para qualquer um deles, nenhum deles me trazia uma sensação de segurança. Pensei em apanhar o autocarro para casa.

Mas tal também não me fazia sentir segura. Na realidade parecia-me tão perigoso como as duas primeiras opções.

E foi aí que senti o verdadeiro desespero, a sensação de perdição, a ausência de orientação, a inexistência de estrela polar de que Gordon Neufeld tanto fala quando refere que os nossos vínculos são os nossos pontos de referência, a razão do nosso instinto de orientação. Sem eles nada mais importa. Sem eles vivemos uma angústia tal que continuar a senti-la não é opção.

 

E é aqui que se dá a orientação por más companhias, os vícios e até mesmo o suicídio. Como diz o mesmo autor, ninguém foge de casa. Todos fogem para casa. Por isso, se o seu filho desapareceu e não sabe onde o encontrar a pergunta milionária é: “Onde é que ele se sente em casa? Quem é o seu vínculo principal? Quem o destronou do seu lugar de pai e o ocupa agora, para o bem e para o mal?”

E na verdade foi isso que eu experimentei naquele momento contundente: uma enorme vontade de fugir, mas sem casa para onde ir. E a angústia de estar simples e irremediavelmente perdida.

Quando comecei a refletir sobre estes assuntos, questionei-me porque não teria cometido suicídio. Ou melhor, porque a ideia de tal não passou sequer pela minha cabeça. Em vez disso liguei para casa e pedi para me marcarem uma consulta de psiquiatria.

E talvez tenha sido essa mesma a razão. O acreditar que ainda havia algo a fazer. A frustração, cujo trabalho primário é mudar o que percecionamos como errado, ainda tinha umas cartas na manga. Como tal, ainda havia esperança para o meu ser.

A impotência não era completa, eu ainda tinha algum poder, um caminho diferente para escolher. E, por isso, vou estar eternamente grata aos meus pais por a ida ao Psiquiatra não ser tabu mas sim uma opção na nossa casa.

Não sei quanto tempo passou entre o pedido da consulta e a sua realização. E muito menos me lembro do que fiz no entretanto.

O que melhor me recordo é do maravilhoso efeito da medicação ansiolítica e do diagnóstico descomplicado: ausência de vivência da adolescência no seu tempo certo.

Lembro-me que a consulta foi a uma sexta e que nesse mesmo sábado, durante a missa semanal que então ainda frequentava, refletia no seu significado.

Uma parte de mim sentia-se leve e acreditava que tinha finalmente encontrado a solução para a tristeza e desespero que me assolavam quase desde que me lembro de mim. Mas um pedaço que eu tentava renegar não deixava de me sussurrar: “Isto não é o fim, é apenas o início, e ainda vai doer por demais”.

A verdade é que se eu tivesse compreendido a magnitude do diagnóstico eu teria percebido que anos duros se avizinhavam. Mas, para mim, saber que não tinha nenhuma doença mental e que apenas tinha saltado uma fase do meu desenvolvimento humano parecia-me algo simples de resolver.

Errado. Principalmente porque o contexto continuava o mesmo, tudo na minha vida permanecia igual, excetuando a agora toma diária de ansiolíticos. Mas se estes são bons para nos dar um pouco de paz e ajudar a recuperar forças, não ajudam em nada à maturação, que era a única cura a que eu podia almejar.

E, assim, demorei mais 19 anos para finalmente viver a adolescência.

 

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